domingo, 20 de janeiro de 2013

Somos nossos próprios demônios

DEMÔNIOS. O sujeito apaixonado tem às vezes a impressão de estar possuído por um demônio de linguagem que faz com que ele se fira e se expulse - como diz Goethe - do paraíso que, em outros momentos, a relação amorosa constitui para ele. 

1. Uma força precisa arrasta minha linguagem para o mal que posso fazer a mim mesmo: o regime motor do meu discurso é a roda livre: minha linguagem aumenta de volume, sem nenhum pensamento tático da realidade. Procuro me fazer mal, expulso a mim mesmo do meu paraíso, me empenhando em procurar em mim imagens (de ciúme, de abandono, de humilhação) que me podem ferir; e, aberta a ferida, eu a sustento, e a alimento com outras imagens, até que uma outra ferida venha desviar a atenção. 

2. O demônio é plural ("Meu nome é Legião", Lucas 7-30). Quando o demônio é repelido, quando finalmente lhe impus silêncio (por acaso ou lutando), um outro levanta a cabeça ao lado e começa a falar. A vida demoníaca de um enamorado parece com a superfície de uma solfatara; bolhas enormes (quentes e pastosas) estouram uma atrás da outra; quando uma se desfaz e se acalma, retorna à massa, uma outra, mais longe, se forma, cresce. As bolhas "Desespero", "Ciúme", "Exclusão", "Desejo", "Conduta Indecisa", "Medo de perder o rosto"(o mais malvado dos demônios) fazem "ploc" uma atrás da outra, numa ordem indeterminada: a própria desordem da natureza. 

3. Como repelir um demônio (velho problema)? Os demônios, sobretudo se são de linguagem (e poderiam ser de outra coisa?), são combatidos pela linguagem. Posso portanto ter esperança de exorcizar a palavra demoníaca que me é soprada (por mim mesmo) substituindo-a (se tenho o talento da linguagem) por uma outra palavra, mais calma (caminho para a eufemia). Assim: eu acreditava ter finalmente saído da crise, quando numa loqüela - favorecida por uma longa viagem de carro - toma conta de mim, agito constantemente no pensamento o desejo, a saudade, a agressão do outro; e acrescento a essa ferida o desânimo de ter que constatar que recaio; mas o vocabulário é uma verdadeira farmacopéia (veneno de um lado, remédio do outro): não, não é uma recaída, é só um último sobressalto do demônio interior. 

trecho do livro Fragmentos de um discurso amoroso - Roland Barthes

Nenhum comentário:

Postar um comentário