domingo, 28 de junho de 2009

[...]

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde,
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chama eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.



Do Guardador de Rebanhos - Alberto Caeiro

segunda-feira, 1 de junho de 2009

II

Não sentia amor. Paixão tampouco. Todos esses sentimentos primários foram reprimidos em prol de algo muito mais forte. Não se tratava de apenas um sentimento - ela não é nem nunca foi reducionista a esse ponto. Se tratava de um acumulo que vinha se intensificando nos últimos tempos (não sabia transpor para o calendário o tempo exato que começou a sentir).
Dentro da confusão conseguia reconhecer apenas contornos de sensações. Respirar havia se tornado uma atividade difícil, pois a cada inspiração sentia a cabeça pesar e quase pender para frente. Porém isso não lhe causava dor, seu corpo estava débil o suficiente para não sentir dor. Às vezes parecia prazeroso. Mas não se apegou a essa impressão, não lhe parecia certo. Quando era tomada de assalto por um espasmo ou outro, voltava a perceber seu corpo por inteiro e sentia as unhas, a língua, a batata da perna, tudo de uma vez. Dois segundos depois voltava ao estado inicial, agora se contendo ainda mais... Precisava se conter. E se continha desde... Pra quê calendários agora? Se continha, e isso bastava.

Então, na vontade de se entender, pensou em aleatoriedades. Se se inserisse em um contexto, talvez encontrasse algumas respostas. Seguindo adiante nesse raciocínio, uma palavra saltou em sua mente: "paixão". (Respirou pesadamente mais uma ou duas vezes antes de pensar novamente.) Paixão. (Mais um espasmo.) Paixão. O que diabos...? Paixão. Não podia ser: paixão era aquela coisa que se tem pelo outro, que se lê nos livros ou se vê nas novelas. Paixão não deveria ser inserida em contexto algum, e se fosse, a classificação deveria ser outra. Paixão é tão abstrato. Pensou em "abstrato" (nunca havia usado "abstrato" em uma frase). Paixão... Ainda não fazia sentido... Mas agora queria que fizesse. Se sentiu ainda mais sufocada com tantos pensamentos... Queria sair daquele cômodo. E gritar, gritar até o ar voltar a circular pelo seu corpo facilmente, gritar até alguém ouvir, qualquer pessoa, não importava quem, gritar até aparecer um alvo qualquer que ela pudesse descontar...

Outro espasmo.

Sentiu novamente a demência tomar seu corpo aos poucos...
Resolveu agir da melhor forma que pôde: respirou devagar, fechou os olhos e forçadamente, dormiu.