quarta-feira, 15 de junho de 2011

Hoje, não.

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Adiamento - Fernando Pessoa

quinta-feira, 9 de junho de 2011

mais um sobre a morte (ou, a não-morte)

Morrer, pra mim, não é uma especialidade - na realidade não é de nenhum ser humano, ao menos não no sentido literal -, muito menos deixar que morra. Minha habilidade sempre esteve em permanecer, não importando as condições, os incômodos ou desgaste. Fui construindo, desse modo, um balaio de permanências capengas: dei privilégios aos restos em detrimento da consistência.
Hoje, repleta de restos, fico procurando quais as peças que faltam do quebra-cabeça... Se ao menos esses pedaços formassem algo eu poderia mantê-los comigo, por segurança. Espalhei os pedaços, montei. Desmontei. Montei novamente. Nada. Nada além de uma formação amorfa e desencaixada. A permanência era minha; os restos, dos outros.

- Minha querida, permanências não são renascimentos, são apenas ossadas.