domingo, 16 de outubro de 2011

O vermelho sempre incomodou Wilma...


Curta-metragem produzido para o projeto Olhares sobre Lilith: http://olharesobrelilith.wordpress.com/

Nos Festivais:
- Festival de Cascavel (PR)
- XVI Festival Nacional 5 Minutos (BA) - 01 a 05/11
- Festival Aruanda (PB) - 09 a 14/12

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Hoje, não.

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-rne para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Adiamento - Fernando Pessoa

quinta-feira, 9 de junho de 2011

mais um sobre a morte (ou, a não-morte)

Morrer, pra mim, não é uma especialidade - na realidade não é de nenhum ser humano, ao menos não no sentido literal -, muito menos deixar que morra. Minha habilidade sempre esteve em permanecer, não importando as condições, os incômodos ou desgaste. Fui construindo, desse modo, um balaio de permanências capengas: dei privilégios aos restos em detrimento da consistência.
Hoje, repleta de restos, fico procurando quais as peças que faltam do quebra-cabeça... Se ao menos esses pedaços formassem algo eu poderia mantê-los comigo, por segurança. Espalhei os pedaços, montei. Desmontei. Montei novamente. Nada. Nada além de uma formação amorfa e desencaixada. A permanência era minha; os restos, dos outros.

- Minha querida, permanências não são renascimentos, são apenas ossadas.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

aleatório e pontual

Existe justiça na morte? Uma razão tangível para alguém deixar de existir? Ou será que a morte, essa persona non grata, age de modo aleatório, escolhendo seu novo inquilino ao acaso? Será que ela traça planos e monta armadilhas em lugares específicos para o primeiro desavisado que passar...? Isso faria valer o dito popular "no lugar errado, na hora errada". Então quantas armadilhas ela deve ter deixado pelo caminho hoje? Cairei em alguma durante o dia?
Pensar na morte é boiar sozinho em um oceano de incertezas, sem saber qual a melhor opção: definir um sentido e nadar cegamente em direção a ele ou apenas se deixar levar pela correnteza. Talvez, com um pouco de sorte, ela tenha piedade e coloque novamente os seus pés na terra. Talvez não. Como fazer brotar piedade na morte? Não sei. Da indesejada das gentes só sei que em um dia banal ela entra na sua casa sem a menor cerimônia (talvez bem na hora do almoço), se aproxima e adormece seu corpo com um beijo suave, deixando a sua cara ir de encontro com o prato de feijão recém servido.

A morte simplesmente é. Um é sem humanidade alguma.
Humanos, meus caros, somos nós - humanos e ingênuos por esperar humanidade do inumano.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Hoje Belazarte nos contou:

"Depois, amor... É inútil os pernósticos estarem inventando coisas atrapalhadas pra encherem o amor de trezentas auroras-boreais ou caem no domínio da amizade, que também pode existir entre bigode e seios, ou então principiam sutilizando os gestos físicos do amor, caem na bandalheira. Observando, feito eu, amor de sem-educação, a gente percebe mesmo que nele não tem metafísica: uma escolha proveniente do sentimento que a babosa recebe dum corpo estranho, e em seguida furrum-fum-fum. A força do amor é que ele pode ser ao mesmo tempo amizade. Mas tudo que existe de bonito nele, não vem dele não, vem da amizade grudada nele. Amor quando enxerga defeito no objeto amado, cega: 'Não faz mal!' Mas o amigo sente: 'Eu perdôo você.' Isso é que é sublime no amigo, essa repartição contínua de si mesmo, se repartindo num casal de espíritoss amantes que vão, feito passarinhos de vôo baixo, pairando rente ao chão sem tocar nele..."

Trecho do conto "Túmulo, Túmulo, Túmulo", do livro "Os Contos de Belazarte", Mário de Andrade

sábado, 26 de março de 2011

Wilma, de Cida

O vermelho sempre incomodou Wilma

desde criança era afeita a frutas

verduras e andanças sozinha pelo quintal

Não gostava de carne

comidas picantes

sabores fora da rotina

Demonstração de afagos calorosos

e no máximo permitia um alisado nos cabelos

Todos a acham estranha

aquela menina pacata

quase opaca e despercebida

Até as brincadeiras

eram sussuradas no canto da parede

onde nem as bonecas falavam

Foi pondo-se moça

Sem saber nem se interessar por nada

seu universo era o timão branco

e a fita azul no pescoço

usados em nome de Maria

Um dia o sangue escorreu por suas pernas

e quase enlouqueceu

A menina invisível foi exposta

ao corpo da casa

e a mãe se apressou em costurar paninhos

e a mal explicar

o motivo da mudança

Todos mês era motivos de chacota

das irmãs

e os paninhos lavados em suplício

Por não saber conviver com o vermelho

não tinha coragem de cortar os pulsos

Um dia ousou olhar-se no espelho

e viu-se em peitos

ganhando cor e jeito de mulher

As cólicas passaram

conheceu o modess

e o desejo decenal se instalou

Entre o décimo e o vigésimo dia

Punha-se em calores por entre as pernas

E sabia-se pronta para a presa

Namorou vários homens

Aprendeu a gostar de sexo

E muito depois a gozar

Com a passar do tempo

A vida instalou-se no quarto

E o novo fez morada nos cabides

Aos quarenta anos

Wilma descobriu os dias vermelhos

As noites molhadas

A máquina de lavar para o lençol branco

E que pela manhã o desejo não tem cor

A querida Cida Pedrosa me fazendo chegar em lugares inimagináveis. Espero que a Wilma dela goste da minha.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Às 18h na Boa Vista, os sinos dobram anunciando que todos os ônibus estarão lotados e sintonizados na Recife FM. O som da Ave Maria das 18h se mescla com as sirenes das ambulâncias...

Às 18h na Boa Vista, o sino da igreja da Imperatriz dobra anunciando o fim do expediente, a cerveja gelada no boteco à beira do esgoto e a última oportunidade de carregar o Passe Fácil.

Às 18h na Boa Vista, transeuntes correm para as paradas lotadas e pagantes correm nas esteiras de academias lotadas.

Às 18h o calor é insuportável na Boa Vista.

Às 18h na Boa Vista, um passante é vítima de um redemoinho de sacolas plásticas de supermercado com embalagens de pipoca.

Às 18h na Boa Vista, uma senhora vai comprar pão na loja de conveniência do posto de gasolina.

Às 18h na Boa Vista, uma mulher perde a bolsa para um cheira cola.

Às 18h na Boa Vista, artistas fazem perfomances desconexas.

Às 18h na Boa Vista, um homem joga uma embalagem de pipoca pela janela de um CDU/Várzea lotado imitando o senhor do banco da frente.

Às 18h na Boa Vista, os circulantes aproveitam o engarrafamento para vender pipoca e água pelas janelas dos ônibus.

Às 18h um passante, correndo para chegar na academia, atravessa a avenida sem perceber o sinal amarelo e é atropelado por um CDU/Várzea lotado. Uma estagiária voltando do Passe Fácil liga para o 192. O trânsito pára. Um cheira cola corre no sentido contrário ao fluxo.
Os ônibus andam cinquenta metros o que impede um passageiro de pagar os cinquenta centavos da pipoca. Uma senhora dá o seu dinheiro do troco para um pedinte na calçada. Um performer deita no meio da avenida. Um CDU/Várzea vazio pára no meio da ponte, no final do engarrafamento. Uma mulher sem bolsa (mas bem vestida) pede dinheiro para completar a passagem na parada de ônibus. Um motorista muda a estação de rádio. Uma sacola plástica do bompreço é levada pelo vento ao encontro de uma embalagem de pipoca Veneza que acaba de ser dispensada pelo seu dono. Inicia então, às 18h10, a habitual dança espontânea dos plásticos. Sobem. Descem. Rodopiam. Embalagens de Mentos balançam timidamente, copos e garrafas de Prata do Vale se arrastam pela calçada, e aos poucos vão tomando as ruas. O vento dá o impulso e todos saltam. Transeuntes dispersos cruzam o centro do espetáculo sendo forçados a participar do balé. Plásticos se misturam com as saias das senhoras, com a poeira, com os fios dos cabelos dos performers, com os espirros dos alérgicos, as embalagens de Karintó se enroscam nas pernas descobertas dos adolescentes...

Às 19h, na Boa Vista, das paradas lotadas, trabalhadores, alérgicos, pedintes, bêbados, acidentados e
estagiários ouvem o eco dos rádios anunciando o "Voz do Brasil".

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Sou sua noite, sou seu quarto
Se você quiser dormir
Eu me despeço
Eu em pedaços
Como um silêncio ao contrário
Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo

Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro,
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele
O seu casaco

Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu itinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo

Uns Versos - Adriana Calcanhoto